Passeio pela Ásia - parte um
Por um belo acaso, tenho descoberto muita coisa legal vinda do lado de lá
Além de artistas contemporâneos interessantíssimos, até o presente momento, doze títulos asiáticos, entre livros, filmes e séries, chamaram minha atenção entre as últimas coisas que tenho consumido. Alguns, mais “antigos”, também foram relembrados para esse compilado que resolvi dividir com a audiência.
Aqui, a resenha vai ser do meu jeitinho: menos descrição da sinopse e avaliação das obras em si e mais “o que tirei dessa história”. Então, sem mais delongas, vamos para a primeira parte dessa viagem.
Hunger
A culinária está em alta nos stramings e, na minha modesta opinião, isso é ótimo. O filme tailandês da Netflix Hunger se passa no universo da alta gastronomia, do bastidor que a gente não vê - cheio de cobrança, densidade, resiliência, diferenças entre classes e até mesmo violência - e do glamour que a gente vê e que é objeto de desejo de muitos, mas vivido por poucos. Segundo a crítica especializada, é um filme previsível, mas muito bem feito e com atores excelentes. Segundo eu, é um filme muito bonito e cheio de mensagens importantes para pensar.
A protagonista Aoy começa a trabalhar para um dos chefes mais prestigiados da alta sociedade tailandesa, o super rígido Paul, com o intuito não só de ganhar um bom dinheiro, mas também de ser reconhecida e de se sentir especial. Na trama, ela passa por vários obstáculos para se provar e impressionar o chef, que além de não dar o braço a torcer, faz questão de mostrar pra ela o que é fazer parte desse seleto grupo, o que eles são e o que realmente querem.
Em uma cena em específico, onde Aoy e Paul atuam em um luxuoso aniversário e preparam, cada um um prato diferente, há cenas igualmente maravilhosas e repulsivas que nos fazem pensar sobre como a alta sociedade vive de aparências e do “se esforce o suficiente para me agradar”, e como são indiferentes a todas as coisas que não dizem respeito a si mesmos. É possível ver em diálogos prévios entre o chef e a novata que, para jogar o jogo e realmente ser reconhecido como especial, você precisa abrir mão de muitas coisas, inclusive, até, de algum escrúpulo. Além disso, fica a reflexão sobre o que é ser realmente especial nesse meio.
O bom filho
Um dos primeiros bons achados recentes que fiz foi esse livro da escritora coreana You-jeong Jeong, que recebeu a alcunha de “Stephen King” daquele país. A história começa quando, após uma corrida noturna, o jovem Yu-jin desperta durante uma madrugada sentindo cheiro de sangue. Um parêntese é que rapaz era um promissor atleta da natação que se viu forçado a interromper a carreira por conta da epilepsia, mas, que de vez em quando prefere suspender o uso de medicação para, segundo ele, pensar melhor. Fecha parênteses, ao caminhar pela casa, ele encontra o corpo de sua mãe.
A trama gira em torno de suas percepções e interpretações. Além disso, pouco a pouco, ele vai recobrando os fatos e tentando encaixar as peças para saber quem a matou: ela chamando seu nome aos gritos, o acesso a um diário da mãe com anotações sobre ele, entre outras pontas soltas.
O que me interessou mais nessa história foi o quanto o desajuste familiar e alguns conflitos podem resultar em traumas irreparáveis. Além disso, fala sobre o quanto podemos ser traídos por nossas próprias expectativas, percepções e memórias. Me fez entender cada vez mais que não se trata de haver pessoas boas e ruins no mundo, mas de todos nós termos nuances e de, diariamente, de forma consciente ou impulsiva, escolhermos ser bons ou ruins.
Chiho Aoshima
Artista japonesa de Neo-Pop, curiosamente graduada em economia, deu uma virada e iniciou sua jornada na arte a partir do uso do Adobe Illustrator. Com inspiração na Pop Art, em Takashi Murakami e filmes de anime, seus trabalhos resultam em paisagens surreais de sonhos. Um acervo e com sua identidade.
Além das artes apresentadas aqui, deixo um vídeo no qual ela fala um pouco sobre as inspirações e pensamentos que norteiam seu trabalho.
Beef
Essa série me ganhou pela temática, pelas atuações e, sim, pela arte que inicia cada episódio também. Inclusive, tem uma therad bem interessante no Twitter sobre o que significa cada uma delas. Beef poderia, por si só, virar tema de reflexões profundas sobre raiva e sobre o que acontece quando a gente não a elabora. Os protagonistas são Steve Yeun e a maravilhosa Ali Wong - que tem ótimos stand ups na Netflix que valem a pena ver - e começa com uma briga de trânsito entre os dois, ou melhor dizendo, entre seus personagens Danny e Amy.
Ela é uma mulher rica e bem-sucedida que atua, paradoxalmente, no ramo da jardinagem e paisagismo, uma atividade vista como tranquila e sensível. Amy faz de tudo para manter a vida aparentemente perfeita, mas na verdade entende que não usufrui o suficiente da vida com a família por viver trabalhando. Já Danny é um motorista que faz bicos para sobreviver e vive em dificuldades financeiras, e deseja trazer os pais para viver mais perto. Ele tem uma relação de comparação e disputa velada com o irmão.
A história se passa nos EUA, em Los Angeles, mas ambos possuem ascendência oriental: Amy é vietnamita e Steve é coreano, o que demonstra que são fruto do famoso sonho americano. Além disso, o marido de Amy é japonês. A série vai escalonando para, o que seria uma discussão cotidiana das grandes cidades, uma verdadeira bola de neve de raiva e ressentimento, cada um deles vendo seu mundo se ruir por falta de, entre outras coisas, diálogo.
Beef fala sobre ascenção social e sobre como, muitas vezes, deixamos de lado algumas pequenas coisas que nos fazem felizes, em prol de manter alguma harmonia entre nós e as pessoas. Sobre o quanto custa caro manter a nossa paz, mas o quanto dar vazão à cólera, por si só, pode ser um tiro no pé.
Assunto de Família
Com título original Shoplifters,o filme foi vencedor da Palma de Ouro em 2018, e trata de uma família muito pobre que aprendeu truques altamente engenhosos de roubos a mercadinhos locais para sobreviver - com direito a sinais, códigos e tudo o que tem direito. Em uma dessas empreitadas, o patriarca da família e seu filho encontram uma menina sozinha, em uma noite extremamente fria. É aí que eles resolvem acolher a menina em sua casa alegando que seria por apenas uma noite, para que ela pudesse estar protegida das baixas temperaturas.
Sem muitos questionamentos, a família também acolhe a menina de maneira afetuosa, o que a faz ter muita ligação com cada um deles - exceto o menino, Shota, que parece sentir certo ciúme da menina apesar de não destratá-la - e dificultando qualquer possibilidade de “devolução”.
A família incorpora a menina ao universo de pequenos delitos, e cada um na família tem uma história particular e complexa. Isso mostra que, ali, cada um se gosta e se respeita, independentemente de como cada um vive. Em um determinado momento, o filme dá uma virada e a família se vê descoberta, revelando ser muito mais complexa que parecia, e tenta esconder a identidade da menina para permanecer com ela. Ao longo da história, a vida da menina e seu dia a dia também é revelado.
O que me chama a atenção nesse filme é justamente o fato de que, apesar de todos os defeitos de cada um, de todas as dificuldades passadas por eles, não há moralismo, julgamentos e ingenuidade, há o amor e parceira entre seres humanos errantes e imperfeitos. Enquanto vemos tantos comportamentos tóxicos e frases ruins ditas por familiares com a máxima de “querer o seu bem”, vemos por outro lado uma família que opera da melhor forma que pode, sem minimizar a gravidade de determinados comportamentos da família, mas jogando luz sobre a diferença que faz, para uma criança, se desvenciliar da falta de afeto e negligência vivida em seu lar de origem.
Grama
Caso queira um graphic novel lindo esteticamente e com uma história real e bem triste, vale a pena separar a caixinha de lenços. Grama retrata a história real da coreana Ok-Sun-Lee que, Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Segunda Guerra Mundial, foi vendida pela família que, apesar de amá-la, passava por sérias dificuldades financeiras e via uma oportunidade de que ela tivesse uma vida diferente.
Apesar disso, ela foi escravizada sexualmente pelo exército japonês e serviu, durante muitos anos, como o que eles chamam de “mulher de conforto”, um eufemismo para a escravidão sexual. Com mais de 90 anos, a já “vovó” Ok-Sun-Lee retrata as memórias daquele difícil passado, e de sua busca, já idosa, por seus familiares e sua casa.
Em um dos crimes mais vergonhosos da humanidade, é comovente ver a percepção da coreana sobre sua vida naquele período, o quanto fazia questão de manter sua origem e nome coreanos apesar das opressões, a constatação triste de que não tinha sonhos e nunca havia conhecido a felicidade, e a luta, mesmo após tanto tempo e dores, pelos direitos das mulheres escravizadas naquela época.
Chegamos ao fim da primeira parte desse passeio, o Substack me notificando de que o conteúdo está longo demais. Mas vale conferir o que mais te emocionar dessa coleção. Se tiver alguma boa dica, me deixe saber nos comentários.
Até a próxima!