Este mês fez um ano que eu saí da casa dos pais e me mudei para um pedacinho de terra que, a partir daquele momento, pude começar a chamar de lar. Também foi o mês em que a mulher que deu voz à minha canção favorita morreu, que criou a música que é trilha sonora da minha trajetória como Ovelha Negra que escolheu não ser a filha perfeita que os pais gostariam. E que, por sinal, estampou o convite da minha festinha intimista de open house.
Em meio a tudo isso, estou fazendo um detox de redes sociais, usando por apenas alguns minutos ao dia. Ao longo das últimas semanas, meus dedinhos se coçaram para escrever sobre tudo, e minha cabeça elaborava rascunhos e frases prontas que eu nem me recordo mais se são realmente relevantes. Mas se tem algo que estou aprendendo é a deixar alguns temas represados para elaborar, pensar e escrever mais calmamente sobre eles depois que todo mundo já esgotou o assunto.
O fato é que, durante estes pouco mais de 365 dias no apartamento cinquenta e quatro,tenho aprendido a criar uma rotina para tudo, a silenciar os monstros da minha cabeça, a pedir ajuda, a sentir menos medo, a levar as coisas de forma mais leve, a escolher minhas batalhas, a me cobrar menos, a dizer “não” e a fazer as coisas do meu jeito e no meu tempo. Como nem tudo são flores, ainda retrocedo nos aprendizados e me pego tentando equilibrar as demandas.
E, por falar em flores…
O que uma flor me ensinou sobre paciência
Depois de matar um girassol e mais algumas outras plantas, tenho a atual companhia de dois seres que esperam por mim firmemente após minhas jornadas São Paulo afora. Elas não fazem festa como um cachorro nem tentam me persuadir como um gato. Silenciosas como eu, elas ficam ali, quietinhas em seu canto, respeitam meu espaço e esperam pacientemente pelos meus cuidados.
Nunca me considerei boa cuidadora de plantas, mas no fim do ano passado, eis que recebi de presente estas duas belezas que, apesar de mais fáceis de cuidar, também requerem atenção e cuidado: uma imponente espada de São Jorge e uma bela Flor de Maio.
Quando recebi as flores, fui instruída sobre os cuidados e, desde então, já me questionava em quanto tempo conseguiria manter as tais plantas vivas. Quantos dias duraria a frágil vida dessas criaturinhas que dependiam dos cuidados da matadora de verdinhas aqui? Só o tempo poderia me dizer.
Também me alertaram: “como o próprio nome diz, as flores dessa planta só crescem no mês de maio”. Na minha cabeça, maio era um período muito, muito distante. Nem eu sabia se estaria viva até lá, quanto mais as flores.
O fato é que, mesmo conhecendo minha quase nula inabilidade com a fauna, tenho tido a paciência de regar as flores conforme as instruções e perdido as contas das vezes que suspeitei que ambas já estavam mortas, apesar de não aparentarem. Por muitas vezes, me puni mentalmente por não ter a menor ideia do que estava fazendo, e por outras me senti mais motivada a aprender sobre as espécies e, quem sabe, encher essa casa de vida com mais plantas de todos os tipos para fazer companhia para as que ganhei.
De maneira assustadoramente rápida, como num corte de vídeo de YouTube, maio chegou. No início do mês, não houve sinal de que haveria flor em maio e, num misto de decepção e conformismo, dei risada e comecei a fazer piada com o fato de que possivelmente matei uma das flores mais fáceis de se cuidar. Apelidei a plantinha de “Flor de Maio de Carvalho” para lembrar do negacionista morto-vivo que virou piada na boca do pessoal da esquerda.
Porém, acredito que ofendi a plantinha, coitada. Diferentemente do tumor de Rita Lee, que mereceu o apelido de Bolsonaro, minha flor não merecia tanto desdém. Como que por mágica, faz alguns dias que estou presenciando o crescimento gradual de belos botões cor-de-rosa que me animam muito e me dão orgulho da nossa caminhada. Além de tudo, isso mostra que é preciso não duvidar tanto de mim mesma e ter paciência com o tempo das coisas.
Não vejo a hora de ver minha filha crescer, mas vou respeitar o tempo dela. Mudei o apelido para um muito mais gentil: “Flor de Junho”.
E, por falar em filha…
Ser cruel é não ser a gente mesmo
Recentemente, saiu um episódio de um dos trocentos podcasts que escuto e que considero irretocável, porque fala de algo que já se passava na minha cabeça havia um bom tempo. No último Conselhos que Você Pediu, Bela Reis fala um pouco mais sobre um tema que já permeava seus últimos conteúdos: a importância de romper simbolicamente com os nossos pais.
No episódio, ela faz uma provocação sobre o espaço e a liberdade que a gente dá para aos nossos progenitores e permite que eles se metam em nossa vida. Ela conta que, desde muito nova, bateu de frente com a mãe, que tinha um perfil mais invasivo e que fazia cobranças muito altas sobre coisas como desempenho escolar e como aproveitar as oportunidades da vida que ela mesma não tinha. Bela conta que tretou muito com a mãe, que não se esforçava para tirar notas altíssimas e que não queria seguir por um caminho que não fosse o que ela mesma escolheu. Tudo isso em busca de fazer a mãe entender que a filha não iria corresponder às suas expectativas.
Em especial, ela fala sobre a importância de enfrentar nossos pais e reinvindicar nosso lugar no mundo enquanto indivíduos. Também há uma analogia muito engraçada, em que ela diz algo como: “enfrentar nossos pais é como enfrentar o chefão de um jogo de videogame. Se vencemos o chefão, conseguimos vencer qualquer um”.
É um assunto muito delicado e controverso, já que está intrínseco desde cedo na cabeça de muitos que “honrar pai e mãe” passa por sutilezas como ter que suportar seus pais invadindo sua casa, seu espaço, dando pitacos na sua vida e fazendo piadas das suas escolhas. Mas, na verdade, ninguém tem que nada! Se nossos pais querem criar pessoas independentes, livres e pelamente felizes, isso significa que, em algum momento, haverá ruptura, será preciso bater de frente com eles. Isso pode ocorrer de forma mais gentil ou mais dolorida. É importante frisar que essa ruptura não precisa ser física: sair da casa dos pais não significa nada se a pessoa continua a deixar os pais consumirem sua mente.
Isso vai ao encontro de uma reflexão recorrente feita pelo Luide, um streamer que, como eu, adora moda, falar de coisas da vida e fazer chacota da direita. Em muitos momentos, alguns de seus seguidores vem até ele com questionamentos sobre como lidar com seus pais, especialmente quando a configuração familiar é de um filho é de esquerda e os pais de direita: são relatos que vão de piadinhas a ultimatos que desgastam por completo algumas relações.
Dias antes dessas reflexões se conectarem na minha mente, já havia me lembrado com mágoa - de novo - de uma série de episódios pessoais da minha vida. Quando eu era mais nova, tive vários embates, em especial com meu pai (que é extremamente amoroso, mas igualmente enxerido e invasivo). Precisei firmar minha posição a ele e minha mãe, sem recuar ou ser gentil. Precisei mostrar que ali havia um indivíduo adulto e que, apesar de dever respeito, não devia satisfação nem iria corresponder a expectativas criadas unicamente na cabeça deles.
Mudamos muitas vezes de casa. Nunca tive um canto só meu, sempre dividi o quarto ou com os irmãos ou, posteriormente, só com a irmã. Essa era uma das maiores angústias da pessoa individualista aqui. Em um determinado momento, meu pai confismou a chave do nosso quarto, impedindo aquele resquício de privacidade e direito que tínhamos de, pelo menos, poder trancar a porta de vez em quando.
Numa falha grotesca de comunicação, ele não informou o motivo do confisco: a porta estaria com problemas? A chave emperrava? Ou ele só queria poder controlar mais as filhas?
Em casa, se deu a terceira guerra mundial: pedi a chave de volta, tretamos muito feio e foi a única vez em que recuei para que não houvesse um rompimento definitivo da nossa relação. Ali, se fez mais forte a vontade de ter um canto meu e me preservar. Ali, Rita Lee começou a fazer parte da minha trilha sonora.
Para completar, alguns meses depois deste episódio recebi um textão muy amigo de aniversário na internet, com um termo que ecoa na minha cabeça até hoje. Minha mãe disse, entre outras coisas, que eu era cruel. Sim, cruel. Apesar de tantos elogios, essa palavra me marcou como uma das maiores ofensas recebidas na minha vida, não só por ter vindo dela, mas também pela palavra utilizada.
Nunca manifestei minha insatisfação diretamente, apesar de não me faltar vontade. Mas sabemos que cruel é quem maltrata animais, quem usa as pessoas, quem é desumano, quem se satisfaz com o mal. E sei que ela utilizou a palavra pra resumir um ano em que tivemos constantes embates.
Após ver tantas reflexões de pessoas que passaram por coisas parecidas comigo, me sinto orgulhosa. Ainda que a palavra me doa e me persiga, é o início do fim de um estigma. A filha cruel era só uma jovem adulta tentando ter sua privacidade. A filha cruel é só alguém que conquistou sua independência muito antes de ter se mudado. A filha cruel é só aquela que vai orgulhar apenas nas coisas que escolher se orgulhar, e não naquelas coisas que os pais esperam. A filha cruel é só aquela que exigia respeito.
Num apartamento perdido na cidade
Na medida do impossível tá dando pra se viver. E estar todos os dias nessa parte arborizada da zona norte é muito especial.
No apartamento cinquenta e quatro, entendi que me mudar foi uma conquista imensa e que me trouxe muito aprendizado, mas que eu já havia cortado o cordão umbilical muito antes.
No apartamento cinquenta e quatro, posso me dar ao luxo de,tal qual Rita Lee, não falar com ninguém, não saber da vida de ninguém nem querer que ninguém saiba da minha.
No apartamento cinquenta e quatro, ninguém confisca minhas chaves.