“ninguém vai te amar tanto quanto o seu credor
nem à primeira vista
nem o primeiro amor
nenhum casório
nenhum estranho no carnaval que te beijou”
(Lucas Matos)
É muito fácil estar em débito atualmente, seja com uma instituição financeira, com um familiar ou consigo mesmo. Na verdade, hoje em dia estamos sempre indo deitar devendo alguma coisa, especialmente devido à velocidade absurda de acontecimentos e informação. É só ter um rápido papo com alguém para correr o risco de estar em débito. E é esse um dos principais motivos para a perda de sono, o constante sentimento de culpa e, até mesmo, questões de saúde mental.
Basta prometer, por exemplo, uma visita a um parente distante e, automaticamente - ainda que não tenha havido promissória ou comprovação do acordo - se está incumbido de cumprir . Ou ainda, é só tomar nota de itens no mercado a serem comprados que é adquirido um débito para si, o “você tem que fazer isso”. Outro exemplo clássico é dizer “chego às cinco” e se atrasar, desqualificando sua palavra.
Além disso, pode acontecer de um colega engraçado da turma ter a intenção de contar uma piada e, ao anunciar o feito, ver que todos ao redor sentem a expectativa do riso que, quando não vem, ou quando vem em menor grau, já deixa o contador da história com sentimento de impotência e débito, assim, podendo se debruçar dias e noites para elaborar uma piada melhor e pagar o débito. Mais um exemplo? Ainda que se durma seis horas por noite, há a culpa ou o cansaço pelas duas horas faltantes para completar o ciclo de sono suficiente. Ou seja, estamos cada vez mais nos munindo de compromissos que viram obrigações a serem cumpridas e que, quando não, se tornam o famoso calote em vários aspectos.
Assim, como explica o streamer Luide Matos no vídeo abaixo, estamos sempre correndo atrás de um suposto prejuízo, nos comparando, nos cobrando e nunca nos sentindo completos o suficiente.
Já ouvi do meu pai que já nasci devendo dinheiro, já que os custos com hospital e o parto são altos, assim como sei que, quem morre, deixa as dívidas financeiras para os parentes. Ou seja, por todo o ciclo da vida, dever é inerente. Por isso, tratando-se da relação com constituição de família, por muitas outras razões, o movimento child free ganha cada vez mais força: não querer se privar de certas vivências, saber que o mundo capitalista é extremamente nocivo para qualquer pessoa viver, entre outros aspectos influenciam na escolha por não ter filhos. Ainda assim, especialmente mulheres, são vistas ainda como insuficientes caso optem pela não-maternidade, são tidas como coitadas ou como seres incompletos. Mulheres já nascem com a obrigação social de cumprir certos papéis, ter um checklist de tarefas a serem concluídas.
Voltando às crianças, a psicoterapia demonstra que o sentimento de culpa, atrelado a não ser suficiente e se sentir devendo alguém, vem da infância. Isso porque, nessa fase da vida o ser humano é dependente de adultos e de suas expectativas, seja com pais, professores, irmãos mais velhos, avós. Ao cometer erros naturais para a idade, a criança começa a experienciar o sentimento de insuficiência quando se depara com a decepção destes adultos.
Se sentir insuficiente faz com que haja, também, a tendência aos “tudólogos” da internet: pessoas que têm opinião sobre tudo e que são irredutíveis sobre tais opiniões, mas que na verdade escondem a culpa por não saberem o suficiente sobre algo e se sentirem, assim, em dívida consigo mesmas. Para elas, é inadmissível que todos estejam falando de algo e elas fiquem para trás, em débito com a sociedade.
A dívida não sai do pensamento e da palavra
O autor Lucas Matos, que abriu esse post com sua poesia, traz no livro Três Semblantes poesias acerca da dívida, e reflete sobre como todos estão em débito, enquanto outros estão na expectativa de serem creditados. E esse ciclo é infinito e inevitável. Em outras palavras: “quando o mundo acabar só sobrarão as dívidas e as baratas”. Conforme análise da Oficina Experimental de Poesia, palavras também fazem parte destes acordos, já que “compram e vendem”, compactuam, demarcam compromissos.
Assim, o que é ser uma pessoa de palavra, afinal? Simplesmente é alguém que honra com suas promessas verbalizadas, que não “mete o louco” e que não deixa de atender às expectativas. É o homem ou mulher de honra, confiável, enquanto a pessoa que não cumpre os combinados é vista como mau caráter, corrupta, aproveitadora, mentirosa e caluniadora. A palavra cria a força da necessidade e a ação arremata.
Além disso, a publicação “O cobre das pombas” de Heyk Pimenta, do coletivo Oficina Experimental, aborda a questão do endividamento quando, em uma passagem, cita a calculadora que pragueja ao se deparar com os salários insuficientes.
Já, ainda falando de poesia, a dívida no campo afetivo, amoroso e sexual é experimentada no livro “O coice da égua”:
“Roberto de Souza me prometeu gozos que nunca me deu
e isso me frustra até hoje
Wagner & eu, mesmo distantes, nos compreendemos
ligamos, indignados, para o serviço de defesa do consumidor
disse a ela
meu ex acreditou todas as vezes que eu disse gozei
disse não sei o porquê de tantas mentiras
mas quando se ama fazemos coisas que não sabemos bem o motivo
estava carente e queria gozar
estava carente precisava
a telefonista bateu forte o telefone
do outro lado da linha (silêncio) e eu ainda pedia o meu gozo
os meus segundos com a telemarketing que não compreendeu
as coisas que se perdem quando se ama”.
Em “Declaração: isto não é um manifesto”, os autores Antonio Negri e Michael Hardt refletem acerca da figura do endividado, aquele ser cuja imposição é trabalhar, visto que o endividamento é inerente à sua condição. Não há saída, já que o efeito da dívida é fazer o trabalhador executar suas ações de forma árdua e sem reclamar. Quando não trabalhamos o suficiente para honrarmos com nossas dívidas, sofremos restrições, bloqueios, e somos disciplinados e coagidos a entrar nessa roda, transformando a culpa em uma forma de vida, como aponta o portal Razão Inadequada.
“Sua subjetividade se configura sobre a base da dívida. Você sobrevive se endividando, e vive sob o peso da responsabilidade em relação à dívida”.
Ainda segundo os autores, um novo modo de se relacionar com uma forma mais natural do mundo, claro que impensável nas mentes capitalistas, é a recusa a participar deste processo que leva em conta seu saldo bancário, já que a atual prática de contrair dívidas para manter o mínimo de dignidade faz com que trabalhemos até a exaustão para pagar as dívidas e contrair novos débitos.
Daniel Jablonski é criador de “Trabalhadores na Arte”, que visou refletir sobre o lugar da arte no mundo corporativo, e sobre a relação entre recompensa financeira versus retorno simbólico para os artistas. Principalmente, por que muitos deles não ganham dinheiro com arte e, além disso, por que quando visam ganhar dinheiro são vistos como menores. O ensaio “Introdução à Ineconomia” merece um clique.
Por fim, para se aprofundar mais no assunto da dívida capital, vale a pena ver o vídeo do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que fala da relação de interesse entre instituições financeiras e as pessoas endividadas - o público favorito delas. Sobre o óbvio bombardeio de propagandas sofrido por nós, gerando estresse, ansiedade e insuficiência, fazendo com que tenhamos mais e mais e passemos a perder o poder de decisão de nossas vidas. É o famoso ciclo do “empréstimo para pagar o empréstimo”.
Músicas pra mandar pro seu devedor do coração
Promessa é dívida: se você gostar, eu volto daqui 15 dias com muito mais.
Abraço e até lá.