Ato um: “Qual é seu nome?” me perguntou uma professora em específico no meu primeiro dia de aula na primeira série. Todos os alunos tinham recebido um crachá com seu nome. Na minha cabeça, pensei “ué, será que ela não conseguiu ler?” e eu me limitei a, invés de responder, apontar para o crachá para que ela pudesse lê-lo. A cara de decepção da jovem educadora querendo me estimular a me comunicar foi nítida.
Ato dois: “Você é muda?” me perguntaram algumas vezes na infância na escola. Ao invés de responder verbalmente com um sonoro “não”, eu simplesmente balançava a cabeça de um lado para o outro, negativamente.
Ato três: Quando minhas primas visitavam nossa casa, lembro-me do quanto elas, falantes como eram, viravam a noite conversando com minha irmã, igualmente verborrágica. Muitas vezes eu fingia que estava dormindo pura e simplesmente pela preguiça de falar.
Ato quatro: Lembro de minha irmã me contar que, quando éramos bem novas, ela – que sempre adorou conversar – inventava histórias pra ver se me impressionava, se eu falava algo em resposta. Não era frieza, mas eu não gostava muito de conversar porque acho que nunca tive habilidade, mesmo. Eu pensava freneticamente, mas não comentava. E até hoje é um pouco assim.
Notas pessoais de uma criança avessa a hipercomunicação que precisou desenvolver essa habilidade ao crescer, pois é impossível trabalhar calada, mas que ainda sofre muito pra se forçar a manter a comunicação com pessoas.
Viciados em falar
Não é difícil encontrar alguém que mal ouve a sua história para te atropelar e começar a falar da dela. Um misto de ansiedade ao não escutar a fala alheia com narcisismo em querer contar sobre as experiências próprias.
Talkaholism, ou narcisismo conversacional, define as pessoas viciadas em falar em excesso. A alta carga de falas, comentários e contação de causos pode variar entre histórias interessantíssimas e uma série infinita de irrelevâncias.
Conforme aponta o Psycology Today, a civilização do ocidente está impregnada da chamada “cultura de palavras” que aponta que, quanto mais uma pessoa se projeta por meio da fala, mais ela é percebida como inteligente, confiável e detentora de um perfil de liderança. Inconscientemente, é como se o talkaholic estivesse sempre tomando a frente, enquanto a escuta ainda está muito ligada a passividade.
Apesar de o narcisismo conversacional não ser definido como um transtorno psicológico, quem nunca se desgastou com alguém com esse traço de personalidade? E não é nada incomum conviver com um viciado em verbalizar: 4% da população pode sofrer com o chamado vício na fala. Parece pouco, mas eles aparecem, se sobressaem, são uma minoria barulhenta. E o mais agravante é que, numa sociedade que cada vez mais estimula a máxima de que quem não é visto não é lembrado, grande parte dos talkaholics não considera isso um problema.
Quando o “falar demais” pode caracterizar um vício?
Em primeiro lugar, é importante lembrar que uma conversa é uma troca de informações, que deve haver reciprocidade. Claro, em momentos críticos de maior ansiedade, é natural querer desabafar e apenas desejar ouvidos atentos para tal. Mas, se a necessidade de falar uma série de trivialidades sem escutar o que foi dito pela outra pessoa for constante, é importante se atentar para o que está havendo.
Ser narcisista é ser “em si mesmado”, portanto, para essas pessoas é extremamente confortável falar sobre si mesmas e, muitas vezes, elas só param para ouvir o outro quando este está falando sobre elas. Fazer o exercício de tirar a atenção de si mesmo e transportá-la ao outro, escutando e descentralizando a conversa, é o que cria o vínculo e, portanto, aproxima e conecta. Sempre que sair de um bate papo, mentalize o que de interessante a outra pessoa te falou, qual história fará você se lembrar dela. Se não conseguir se lembrar, repense sua forma de interagir.
Outra questão que identifica o talkaholic é que, ainda que não escute, ele precisa de um interlocutor. Portanto, falar sozinho enquanto cozinha não é snal de compulsão, já que o adicto precisa de alguém para servir de “depósito de palavras”.
Alguns padrões dessas pessoas são que elas não olham nos olhos, falam a mesma coisa várias vezes e também se perdem no raciocínio. Além disso, elas não conseguem resumir a história, editar e omitir alguns pontos, contando detalhes insignificantes e aleatórios.
Por fim, ao contrário do que possa parecer, essas pessoas sabem que falam demais e que estão ouvindo de menos. Porém, o mais comum é que peçam desculpas e sigam falando e falando e falando.
Se ainda houver dúvidas, existe uma Escala Talkaholic, que é um método desenvolvido por James C. McCroskey e Virginia P. Richmond que identifica o que é uma sutil ansiedade para falar e o que já é caracterizado como compulsão.
A solução é o retiro
Basta um fim de semana na praia para notar que, cada vez mais, se vê pessoas com caixinhas de som. Numa viagem qualquer, sempre vai haver alguém com um violão pronto para tocar aquela do Legião Urbana. Estar em casa em silêncio faz com que, ansiosamente, possa haver o impulso de ligar a TV ou o computador, mexer no celular ou ligar o som. Bares com música ao vivo muitas vezes estão com som tão alto que se torna impossível conversar com a pessoa da frente sem elevar a voz aos quase gritos. No transporte público, é difícil não se deparar com alguém que escuta vídeos ou áudios do Whatsapp sem o sagrado fone de ouvido - e, para piorar, sem pudor algum de estar incomodando.
Na contramão de tudo isso, ficar em silêncio na companhia de alguém, ainda que possa ser extremamente desconfortável para muitos, pode ser lido, na verdade, como: foco, conforto, intimidade, pensar antes de falar, escuta. E muitas pessoas já perceberam o valor disso.
Com uma rotina carregada de poluições sonoras, se torna mais comum querer se embrenhar em locais inóspitos e praticar o cada vez mais buscado Turismo Silencioso. Essa modalidade consiste em buscar viagens fora de temporada e para destinos pouco buscados pelas pessoas, quase literalmente uma fuga. Algumas pessoas estão dispostas a passar alguns perrengues para ir na contramão dos destinos mais hypados, só pela recompensa do descanso e paz de espírito de ficar em silêncio por um tempo. Geralmente, esse tipo de viagem é muito encontrado em agências de ecoturismo.
Para fugir do monólogo e apreciar o silêncio
Uma série de conteúdos sobre silêncio abordado das mais variadas formas. Mas antes, uma lista de três canções clássicas que abordam o tema:
Podcast “Estamos Bem?”
No episódio 216, Bárbara dos Anjos e Thiago Theodoro, dois comunicadores natos, apontam a importância de falar menos e ouvir mais, do quanto ser mais silencioso pode ser visto erroneamente como ser uma pessoa desinteressante em meio a uma sociedade ególatra, do que é silêncio versus o que é repressão e da busca pelo equilíbrio.
App de meditação Lojong
Falar de silêncio sem pensar em meditação é impossível, e o app Lojong, disponível em Android e iOS, auxilia na concentração e na redução da ansiedade por meio de áudios, vídeos e passo a passo na jornada da meditação guiada.
Filme “O Som do Silêncio”
O filme conta a história de um baterista ex-viciado que perde gradativamente a audição que, dentro de pouco tempo, se torna definitivo. A adaptação do baterista à sua nova realidade e a integração com a comunidade surda, além da adaptação à nova condição, é a narrativa sensível do filme.