Depois de uns bons dias de trabalho intenso, a ansiedade tomando conta e sem pensar muito em mim, resolvi me dar um presente: amante de música, ritmo e poesia que sou, estava sentindo muita falta de me reconectar com tudo isso e ver um show de leve. Então fui buscar qual dos meus favoritos teria um espaço na agenda pra eu curtir um som ao vivo.
Em meio a tanta coisa boa e vontade de ver tudo de uma vez, flertei com o ingresso da dupla que eu amo, Yoùn, na Casa Natura Musical, e os dedinhos coçaram pra ver o incrível Yago Oproprio numa das minhas festas favoritas, Só Pedrada Musical. Mas não demorou muito até que eu encontrasse ingressos disponíveis no Sesc pra ver um dos melhores: Rodrigo Hayashi, ou melhor, Rodrigo Ogi.
Rapper, pichador e cronista de uma grande cidade cinza bem conhecida, suas observações se transformam em letras que batem forte, com rimas densas e nada triviais que falam de realidade e fantasia, de rotina e adrenalina, de violência policial, de Deus e o diabo, horror core. Por tudo isso, ele é extremamente respeitado e citado entre os mais famosos do rap.
Daqui alguns dias, haverá o lançamento do álbum Aleatoriamente, no Sesc Pinheiros, e meu ingresso já tá na mão, ou melhor, no celular. O detalhe é que o show vai contar com participações de Juçara Marçal e do rapper favorito do seu rapper favorito, Don L. A partir da compra, comecei a ouvir com mais frequência esse álbum, que foi lançado em 27 de setembro e, por correria, eu não tinha parado pra ouvir com a atenção que gostaria.
O álbum do Constantine do Rap começou a ser composto quatro anos atrás, de forma minuciosa e nada aleatória e, segundo muitos, inclusive eu, é um forte candidato a álbum do ano de 2023. A mesma sensação que tive quando ouvi o impecável Abaixo de Zero: Hello Hell, de Black Alien, que passou o rodo em tudo o que concorreu em 2019.
O resultado? Eu, que já sou bem viciada em muitas músicas dele, fiquei intrigada e viciada em muitas outras mais, e resolvi fazer o impossível: elencar algumas das letras mais fodas do homem, na minha modesta opinião. Foram só dez, mas poderiam ser muito mais. Esse disco merece barulho demais, e toda a obra de Ogi também.
Eu Tive um Sonho - Crônicas da Cidade Cinza (2011)
Obra de arte do início ao fim, a começar pela capa com graffiti assinado pelos sensacionais OsGemeos, a décima primeira faixa do álbum trata dos retirantes que vieram do nordeste para o sudeste na missão de prosperar nas grandes cidades, mas, na verdade, ajudando a construí-las. Impossível não se identificar com o trecho:
“Tive cinco filhos, Cláudio, Severina
Pedro e Marinalva, e também Quirina
Criei minhas crias, com total autonomia
Dei o pão de cada dia, graças a força divina
Na construção civil me aposentei depois de anos
Felizmente como deus me permitiu
Vou poder dizer pros meus netinhos
Que esse gigante cinza foi vovô quem construiu”
A Vaga - Crônicas da Cidade Cinza (2011)
Com um refrão onde é possível ouvir a voz de Mano Brown dizendo que “a vaga está lá esperando você”, da música Diário de um Detento, Ogi relata as tentações fáceis que aparecem no caminho de quem passa por um aperto financeiro, e do dilema moral das escolhas.
Além disso, segundo o site Submundo do Som, a produção da música, que conta com o trecho dos Racionais MCs falando sobre “a vaga” no presídio é como se fosse a voz da consciência do cidadão, a fim de aconselhar que se afaste de problemas e não preencha essa vaga em específico, mas sim a vaga de emprego que procura.
“Às 5 da matina, num dia acinzentado
Eu tava precisando de uma remuneração
Sonhava em superar os meus dias de cão
Numa bolsa aberta eu vejo um pote de Danone
E um CD do Ramones, também um iPhone
Quando a minazinha moscou, mão coçou
Consciência me alertou com trombones
Dei sinal, desisti, logo refleti
Tenho fé, um café vou tomar ali
Um pingado e um pão na chapa pedi
Nem pensei, debandei, não paguei o que consumi
Novamente a consciência foi sem clemência
Me fez consertar um ato de inconsequência.”
Hahaha - R Á (2015)
Pra quem curte músicas engraçadinhas, essa aqui vale a pena, também por esse clipe sensacional que demora pra carregar de tantos caras e minas pesados do rap que participam. A história é sobre um cara clássico: casado, porém metido a garanhão, falador, contador de histórias, de mente inventiva e cheio de balelas sobre aventuras com mulheres, que após sonhar com vários encontros com mulheres diferentes e se meter com o pai de uma delas, acorda do pesadelo.
“ ‘Mas meu senhor, eu lhe explico e não retruco
Não complico, tá maluco? Nunca teve vuco-vuco’
E ele sorria com sadismo, satanismo
Faz meu nome de batismo ser Eurico Eunuco
E chacoalhava o meu falo, nem falo mais
A felicidade num estalo pro ralo vai
Quando senti que alguém puxava o meu cabelo
Uma voz bem parecida com a da Baby Consuelo
Parece que alguém ouviu o meu apelo
Minha mulher me acordou do pesadelo”
7 Cordas - R Á (2015)
Samba é vida, rima engraçadinha e bem feita é tudo, e sempre que ouço “7 Cordas” me imagino tomando uma cerveja gelada de folga fazendo nada. Essa música eu gosto de graça, sem muita justificativa. Álbum cheio de gracinhas esse, inclusive.
“Pique Ferris Bueller
De bermuda usando bota Caterpillar
Um barril lotado de cerveja Müller
E uma MILF tipo a Letícia Spiller”
Aventureiro - R Á (2015)
Como expresso pelo blog Raplogia, a criatividade, inventividade e bom humor do Mestre Hayashi na hora de criar suas rimas, muitas vezes utilizando do exagero e surrealismo, faz com que a gente se transporte para histórias em quadrinhos, como se suas letras fossem capazes de se tornar imagens.
“Agora estou com os leões aos milhões
E lhes hipnotizo só com a cadencia que pus voz
Eram comandados por Liu Chen
Com o patrão da cocaine
Que andava junto com os capangas num Rolls Royce
Fiz um exército homérico, tão numérico
Meus leões enfurecidos te ferem coléricos
(Mestre do flow) Entoam mantras tão fantasmagóricos
Comemorando com seu sangue em drinques alcoólicos.”
Nuvens - Pé no Chão (2017)
Uma música muito linda e emocionante, que vai na contramão das demais criações de Ogi. Isso porque a letra fala da relação dele com seu filho, do momento em que a criança surgiu em sua vida, e com vozes e sorrisinhos infantis. O clipe, todo em P&B, é um complemento cheio de amor.
“E logo cedo eu fui testado no meu bairro
Onde molequin que não tem pai vai sofrer
É muito louco se eu pensar que eu tive que ser sábio sem saber
E caminhar por onde as valas são várias
Forma um vale de velas, o velório de vários, vários
E entre os lares formei pares com párias, no páreo
Buscando a sorte de Ronaldo Nazário
Mas minha mãe foi meu exemplo, foi meu templo
Onde eu meditava para não perder o centro
E quando ela foi embora e eu não pude ir
Jamais igual eu puder rir
E a depressão foi como canções melancólicas em pout porri
Girando em loop 12 anos
12 anos venho perguntando cadê minha crença
E a resposta veio após a 12 anos”
Veneno - Rastilho (2020)
Uma das minhas músicas favoritas de Ogi é uma participação no álbum de Kiko Dinucci. A faixa é a cara de Ogi, pois narra a luta entre João e um “cramulhão", e a junção da voz meio grave meio rasgada de Ogi com os riffs de violão de Kiko narram uma luta épica e cheia de reviravoltas. Eu preciso ouvir essa música pelo menos uma vez por dia, e sempre que escuto é como se fosse a primeira vez. Obra de arte.
“Feio na foto está
E eu posso atestar
O inferno é seu spa
E estas férias
Não são etéreas não tem como escapar
E assim no solo bateu
E a vida toda escorreu
No copo do cão caiu
E ele viu
E ele riu
E bebeu
Mas de repente deu um piripaque
E o cão não aguentou a birita
É muito forte o veneno do homem
Que até o capeta vomita
Foi mais um caso daquele que quando alguém conta
Ninguém acredita
E como um passe de mágica
Na minha frente João ressuscita”
Rotina - Aleatoriamente (2023)
Chegando ao álbum Aleatoriamente, a primeira faixa já começa com uma pedrada, tanto a letra quanto o clipe. Tratanto do trabalho precário, da percepção do que é ser artista, do emputecimento diário nosso de cada dia e da ansiedade e ódio que nos consomem por dentro, Rotina, que relata a vida de um artista que precisou trabalhar num food truck e que já foi Uber, é o melhor cartão de visitas que este álbum poderia ter. Honestamente, eu poderia colocar a letra toda aqui.
“E no busão alguém pisa
No meu pé tão forte que o dedo agoniza
Sobe o estalo na cara quе mata o carisma
Prestes a causar cataclisma
É a pequеna dor do picar da pequena formiga
Que vira bicada de galo de briga
Sobe a ira no meu contagiro
Conto até 100 e respiro”
Peixe - Aleatoriamente (2023)
Num duo excelente e com um refrão chiclete com Tulipa Ruiz, a música fala da proximidade com a morte, da forma fantasiosa habitual de Ogi. Por isso, fica a cargo da sua imaginação o motivo pelo qual a morte busca por Joaquim, o personagem da música. Como eu amo silêncio, e pelos versos iniciais que falam sobre ele ter falado demais e que “o peixe morre pela boca”, gosto de pensar que esse seria o motivo para a morte buscar por ele.
“Escapei, corri feito Hornet
Só que eles tavam de foguete
Mas sou atacante tinhoso
Habilidoso e boto fogo
Eu me livro, faço de bobo
Driblo de novo, manjo do jogo
Ouço a torcida gritar quando eu humilho a morte
E ela tentou acertar meu tornozelo bem forte
E eu escapo liso, quase fico aleijado
Meu adversário já ficou estatelado
Ele tá desnorteado procurando Nemo
E ele disse que eu tinha pacto com o demo”
Aleatoriamente - Aleatoriamente (2023)
Ansiedade e scrollar nas redes, sem se aprofundar em nada, fazer pesquisas extremamente aleatórias na internet, buscar uma coisa e cair em outra, tudo isso na velocidade da luz. É assim que Rodrigo Ogi retrata o que se passa na cabeça (ou no PC) do personagem, que deixa com que “a agonia do pensamento vá na direção do que bem entender”, como bem relata o portal Flagra Rap.
“Aleatoriamente
Surgem na minha frente
Sugestões pra quem quer tratar tártaro no dente
E tem vídeo sobre os bárbaros
Vídeo sobre pássaros
Eu só tenho cárie, não preciso tratar tártaro
Vídeo sobre tartaruga
Vídeo pra quem trata ruga
Cai num vídeo que o veneno mata praga e pulga
Me imaginei pegando a estrada e a pulga na garupa
Depois que assisti o vídeo de uma Hayabusa
E essa pulga bem atrás da minha orelha pula
E ela me pica com se quisesse um homicídio
Que coisa horrível, preciso encontrar alívio
Rapidamente acessei o XVideos”
Em resumo, estou bem empolgada pra ver esse show no Sesc e ter um momento de relaxamento, emputecimento coletivo e fantasia em meio ao caos e dureza dos dias.