Brincando de boneca, jogando golfe, tendo pesadelos com corujas, reunindo-se na noite de Natal, bebendo chá, ou em versões psicodélicas e multicoloridas, é possível encontrar gatos das mais variadas formas e contextos na arte de Louis Wain. Estas figuras que hoje inundam a internet em fotos, vídeos e artes começaram a ter suas 7 vidas mais fáceis depois que passaram pelas mãos do artista.
Louis Wain é amplamente descrito como gateiro e excêntrico, e só por isso já ganhou minha identificação. Mas, além disso, ele ficou famoso por ilustrar milhares de vezes a figura felina de maneira amável e engraçadinha. Isso na Grã-Bretanha do início do século XX, tempo em que essas coisinhas lindas eram consideradas pragas - provando que ignorância humana não vem de hoje. Pois bem: a arte dele ajudou a disseminar a ideia de que, sim, gatos são muito fofos e legais.
Internet adentro, é fácil encontrar artigos e vídeos que o reduzem a um “artista doidão”, que foi diagnosticado, ficou cada vez mais agressivo e começou a pintar gatos abstratos e insanos. Mas será que é tão simplista assim?
Quieto, super sensível e incapaz de negociar o próprio trabalho (também me identifico), com apenas 20 anos, o artista precisou lidar com a morte repentina do pai, que era comerciante da área têxtil, e passou a sustentar as mulheres de sua família: sua mãe, sua esposa e suas cinco irmãs mais novas e solteiras. Nesta época, a família passou por uma grande escassez de recursos, já que Wain era mão aberta e distribuía suas pinturas para quem pedisse sem ganhar um tostão em troca.
Wain passou a ser professor da escola de arte de Londres da qual havia sido aluno. Além disso, fazia trabalhos como colaborador regular para revistas e jornais. Em seus primeiros anos de pintura, se especializou em desenhar animais e cenas campestres. Com 24 anos, vendeu seu primeiro desenho de gatos para uma publicação local.
Dois anos mais tarde, os gatos protagonizaram novamente suas pinturas quando foi contratado para ilustrar um livro infantil. Apesar do sucesso, inicialmente ele não queria ser conhecido como ilustrador de gatos, acreditando que não seria levado a sério.
Pouco tempo depois de casar com sua esposa, a então governanta de suas irmãs, Emily Richardson, Wain testemunhou o conforto que Peter, um felino preto e branco, trouxe a ela quando o recebeu de presente para ajudá-la a enfrentar uma grave doença: um câncer de mama terminal. Muito grudado na mulher, o gato acabou se tornando “modelo” de pinturas lúdicas e informais feitas por Louis Wain. Eram caricaturas que o artista fazia do bichano para divertir e, de certa forma, curar Emily, sem a pretensão de comercializá-las.
Ainda que não houvesse a intenção de tornar Peter famoso, uma ilustração do gato acabou sendo publicada em um livro de enorme sucesso na época. Foi a única pintura do gato de Emily que ela pode ver, vindo a falecer alguns meses após a publicação. A partir daí, Wain passou a ficar cada vez mais introspectivo, passando a lutar contra a depressão e a ansiedade.
Ao longo do tempo o artista, que já tinha a imaginação muito fértil, passou a intensificar ainda mais os desenhos de gatos para homenagear a memória de sua mulher, e ao bem que os felinos faziam à ela. Wain se caracterizou como um profissional ferrenho, produzindo, em média seiscentos novos desenhos por ano. O destaque ficava para os anuários de Natal e os cartões postais do artista, que fizeram muito sucesso ano após ano e contavam, claro, com as figuras felinas.
Não demorou muito para que o artista fosse considerado uma celebridade muito querida e que fosse conhecido como uma autoridade no mundo dos gatos: foi eleito presidente do National Cat Club, julgou competições de gatos, esteve envolvido com a Sociedade para a Proteção de Gatos e em uma campanha contra testes em animais. Tudo isso contribuiu para desestigmatizar a magem dos felinos por parte dos britânicos.
Porém, mais um golpe em sua saúde mental estaria por vir. Wain, que já não tinha talento para negócios, sendo explorado e deixando de cobrar royalties por seus trabalhos, se deparou com a escassez do mercado durante a guerra, fazendo com que enfrentasse novamente a pobreza e, assim, agravando seu quadro depressivo. O antes gentil Louis Wain foi se tornando mais violento e de comportamento inconstante.
O artista passou a acusar as irmãs de roubo e maus tratos, e chegava a passar horas trancado em seu quarto escrevendo sobre espíritos. A família procurou a ajuda de um médico que o internou no Hospital Psiquiátrico de Springfield, em Londres. Na época, não havia a compreensão e diversidade de diagnósticos existente hoje, portanto, ele foi diagnosticado como louco. Algumas teorias apontam que, nos dias de hoje ele poderia apresentar diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista. Outras apontam para Esquizofrenia.
Enquanto, de um modo geral, os gatos retratados por Wain tinham postura ereta e trajes e comportamentos tipicamente humanos, agora os animais se destacavam por serem cada vez mais coloridos e mais difíceis de se identificar. Apesar de ser amplamente divulgado - especialmente por vídeos curtos de TikTok e Reels - que esse tipo de modificação no estilo se deu graças à progressão de sua condição mental, publicações especializadas apontam que não necessariamente, visto que não se sabe ao certo a ordem cronológica das ilustrações do artista.
Muito mais que o “retrato de um artista psicótico”, os gatos caleidoscópicos podem significar a simples exploração do artista por novas cores e padrões. Até porque, segundo a publicação Psychotic Art, de 1960, Wain continuou a produzir trabalhos em um estilo mais tradicional nessa mesma época. Em paralelo, o artista poderia estar se sentindo mais desprendido de obras que fossem “comercializáveis”, fazendo com que apostasse em novas retratações de figuras felinas. Alguns teóricos apontam, inclusive, para um maior desprendimento e confiança de Louis Wain.
No início de sua internação, muitos amigos e fãs não sabiam de sua condição. Quando ficaram a par do ocorrido, no ano de 1925, se mobilizaram para transferir Wain para o Bethlem Royal Hospital, após apelo público e intervenção pessoal do primeiro-ministro da época. Em Bethlem, o tratamento consistia em tornar o ambiente o mais agradável possível. Em um Natal, por exemplo, a equipe do hospital perguntou a ele se gostaria de ajudar a decorar o prédio, no que Wain decidiu fazer dos espelhos a sua tela. Além disso, nas paredes de Bethlem o artista desenhou gatos em clima natalino. É possível que ele tenha feito isso por reconhecimento ao hospital, que lhe libertou das preocupações financeiras.
Os desenhos de Wain permanecem até os dias atuais no Bethlem Museum of the Mind, localizado no atual hospital psiquiátrico. Atual porque, em 1930, o Bethlem Hospital foi transferido. Por isso, Wain deixou o hospital, ficando no Hospital Napsbury, lugar em que desenharia até sua morte, em 1939.
Curiosamente, uma das obras mais comoventes de Louis Wain não é nenhuma das mais coloridas e sofisticadas: é uma ilustração simples, feita com giz de cera, com um gato sorridente e expressivo, no ano de 1928, quando já estava internado no novo hospital: “Estou feliz porque todos me amam”.
Fontes:
https://www.bbc.com/news/uk-england-london-59518847
https://illustrationchronicles.com/cute-cats-and-psychedelia-the-tragic-life-of-louis-wain