“Meu principal objetivo é entreter a mim mesmo e evitar crescer como artista” é o que responde o ilustrador estadunidense Travis Lampe em entrevista ao blog do The People’s Print Shop. O artista ainda afirma que, basicamente, sempre pintou e desenhou as mesmas coisas ao longo do processo criativo, e que elas pouco evoluíram com o passar do tempo. Num universo bombardeado por imperativos como “busque fazer algo novo” e “cresça independente do que aconteça”, é de se admirar ouvir tamanha carga provocativa numa resposta sobre seu próprio trabalho.
O que chama a atenção não é a provável persistência de Lampe, não é ele supostamente ter esboçado a mesma ideia centenas de vezes, mas sim o fato de que, para ele, a pouca evolução de seus traços e narrativas ao longo do tempo não faz do seu trabalho um drama. Tampouco há a ambição de se tornar um ilustrador globalmente conhecido. O objetivo dele parece ser, muito mais que a inquietude impositiva ou a constante busca pelo aperfeiçoamento, simplesmente se divertir, fazer algo bom para si mesmo, curtir o processo.
Nota-se que ele não está levantando bandeiras sobre fazer o que se ama e levar o processo criativo de maneira leve. Ele transmite aquela vibe de simplesmente querer seguir fazendo as coisas da mesma forma, e tudo bem.
Basta rolar um pouco o instagram do artista para ver que há uma pitada de acidez em seu próprio trabalho, tanto nas obras em si quanto na maneira como ele as descreve. Em alguns resgates de ilustrações mais antigas, ou throwback, é possível ler o próprio diagnóstico de que, apesar de se passarem décadas, pouca coisa mudou em seu estilo de pintura.
Na ilustração escolhida para esse post, por exemplo, ele faz questão de não se levar a sério: brinca que o tal tilintar da desgraça se trata de algo “irritante, mas muito melhor que um free jazz”. Assim, além da despretensão sobre o próprio trabalho, ele faz um comparativo com o estilo de jazz improvisado e livre que revelou nomes como John Coltrane.
Se há quem queira evitar crescer, há quem questione os métodos como grandes e consagrados artistas exercem sua arte. E, ainda que o improviso tenha jogado luz sobre excelentes músicos, o ato de improvisar ainda é visto como “fazer de qualquer jeito, com desleixo”.
Foi o que aconteceu com Caetano Veloso em uma live durante o período de quarentena em 2020. Mais precisamente em 7 de agosto daquele ano, dia em que comemorava seus 78 anos, esse grande cantor e compositor resolveu presentear o público com uma apresentação em sua casa, na companhia de seus filhos. A transmissão envolveu aparatos profissionais, como um estúdio e a veiculação num serviço de streaming.
Em um dado momento, Moreno Veloso toca um instrumento conhecido como prato-e-faca, que é amplamente utilizado no samba de roda baiano. Um parêntese é que, historicamente, esse instrumento de percussão foi executado por mulheres em sua maioria, pois tinham a cozinha como espaço predominante, enquanto os demais instrumentos ficavam a cargo dos homens. Uma das maiores artistas do samba com prato-e-faca é, inclusive, uma mulher: Edith do Prato aprendeu o instrumento ainda com uma década de vida.
A importância do prato-e-faca para a modernização do samba foi essencial, aparecendo em apresentações de escolas de samba e até mesmo em trechos de filmes, como a obra Saravah, de 1969.
Apesar da enorme riqueza histórica desse instrumento, o preconceito sudestino imperou na repercussão da live de Caetano. Se décadas atrás o uso do prato como instrumento era visto como ousado e vanguardista, a internet e veículos de comunicação de 2020 viam como inusitado e curioso. Em uma avaliação simplista, revistas especializadas como a Rolling Stone definiram a apresentação como cômica, e a Folha de São Paulo definiu como improvisada e caseira. Obviamente, Caetano deu aula em um post em suas redes sociais, escancarando, como sempre, a burrice de grande parte da imprensa.
Como define a publicação do blog Volume Morto:
O prato não é um “improviso” no sentido negativo ou amador. Não é nunca um “tapa-buraco”. É um dispositivo sônico complexo, delicado e cheio de nuances que nasce precisamente da inquietude criativa e da insubmissão. Fazer música e se expressar com aquilo que está ao alcance das mãos.
Tec tec tec…
Ter um roteiro pronto ou improvisar? Modernizar o processo criativo ou mantê-lo intacto? Fazer se tornar um trabalho ou fazer por hobbie? Foram essas as muitas questões que permearam minha cabeça ao criar a newsletter do Natverso.
O fato é que, se não dá pra improvisar com excelência como todos os músicos citados nesse post, meu método vai ser mais parecido com o do modesto e sarcástico ilustrador que abriu esse texto: fazer o que costumo fazer, sem a pretensão de crescer. Acredite, vai fazer um bem danado pra minha saúde mental.
Pra fechar, deixo uma joia de improviso da canção Taj Mahal, por Gilberto Gil e Jorge Ben. São 16 minutos de pura arte do improviso que valem muito a pena.
Bônus: há mais canções desse dueto genial que podem ser ouvidas na íntegra aqui.
Abraço e até a próxima.